segunda-feira, 10 de junho de 2019

O VALOR DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Quando cheguei ao curso de direito, em 1996, logo me interessei pelas noções de hermenêutica jurídica, apresentadas na Introdução ao Estudo do Direito, uma espécie de enciclopédia do conhecimento jurídico. Aprendi que existem diversos critérios ou regras de interpretação das normas jurídicas, como o literal (gramatical), o lógico (racional), o sistemático, o histórico, o teleológico. Nisso nos ajudava o clássico de Carlos Maximiliano, com o título “Hermenêutica e aplicação do direito”, além dos manuais introdutórios e das aulas de professores dedicados ao tema. Percebi naqueles dias alguma aproximação entre as regras hermenêuticas do direito e as regras hermenêuticas que eu, ainda um jovem estudante, poderia aplicar no estudo da Bíblia.
Nas reuniões da Aliança Bíblica Universitária (ABU), aprendíamos a utilizar o “método de estudo bíblico indutivo”, que, consubstanciado nas etapas da Observação, Interpretação e Aplicação, parte da premissa de que qualquer entendimento deve ser extraído do próprio texto, sem o predomínio de pressuposições ou raciocínios arbitrários. Assim, na leitura dos Evangelhos, caminhávamos primeiramente pela elucidação de termos como “fariseu”, “dracma”, “publicano”, além de circunstâncias de tempo e lugar (etapa da Observação), para depois buscarmos o significado da passagem (etapa da Interpretação propriamente dita), e, adiante, tentávamos estabelecer “o que este texto significa para mim hoje e o que devo fazer a partir de agora” (etapa da Aplicação).
O que a ABU me ensinava – aprendi posteriormente – era o emprego do método histórico-gramatical (ou gramático-histórico) de interpretação das Escrituras, preconizado pela Reforma Protestante, mas com origens na Era Patrística (Era Pós-apostólica) e, acima de tudo, recomendado implicitamente pela Palavra de Deus. Era justamente esse o método empregado, por exemplo, pelo único livro teológico que eu utilizaria, no princípio dos anos 2000, em estudos e na preparação de sermões, o “Novo Comentário da Bíblia”, edição em dois volumes da Vida Nova (um livro de minha esposa que mantemos com muita alegria e boa recordação). Ao discorrer sobre cada versículo das Escrituras, renomados autores buscavam saber “onde”, “quando”, “por que”, “para que”, “por quem” e “para quem” o texto foi escrito, o que ele significou para seus primeiros leitores e quais as correlações que se poderiam fazer entre diferentes passagens de ambos os Testamentos.
O método histórico-gramatical é uma das seções da belíssima arte da hermenêutica, que também cuida de pressupostos válidos e regras (princípios) concernentes à correta interpretação. A hermenêutica pode ser bíblica, jurídica, filosófica ou relacionada a outros campos do saber, mas poderíamos afirmar que para a teologia e ética cristã ela é ainda mais relevante, considerando que o cristão precisa crer e proceder exatamente de acordo com o que a Bíblia diz, disso dependendo sua vida, salvação e visão de mundo.
Eu também aprenderia mais tarde que "um texto bíblico jamais pode significar o que ele nunca significou". E entenderia que existe diferença entre interpretação (o sentido do texto) e aplicação (o que devo fazer agora) - o sentido do texto bíblico é sempre o mesmo, mas a aplicação pode receber ênfases distintas, conforme o contexto histórico dos leitores, assim como pode abranger situações as mais diversas, sem limitações de nenhuma espécie.
De acordo com o texto de II Tm 2.15, o obreiro precisa se apresentar a Deus “aprovado”, sem ter “do que se envergonhar”, e para isso deve manejar bem “a palavra da verdade”. Manejar é manusear, utilizar, empregar, e isto deve ser feito da melhor maneira, porque se trata da Palavra de Deus, que entendemos ser inspirada, inerrante, infalível, autoritativa, suficiente, absoluta e eterna.
Jamais um obreiro deve desconsiderar o valor da boa interpretação bíblica, pois tudo o que pensamos ou fazemos deve estar pautado pelas Escrituras, sendo a interpretação bíblica uma forma eficaz de buscarmos o conhecimento de Deus. De fato, a vida cristã, o louvor, a adoração, o evangelismo, as missões, a oração, a pregação, a teologia, a ética cristã e a doutrina passam necessariamente pelo texto bíblico, o que demanda de todo cristão, e especialmente do obreiro, atenção ao que está escrito, ao seu sentido e alcance.
O bom manejo das Escrituras permite a formatação de uma cultura cristã, o fortalecimento de uma cosmovisão (weltanschauung) cristã, o combate a erros doutrinários, heresias e movimentos sectários, e, ainda, o combate a ideologias perniciosas e anticristãs, as quais podemos arrolar entre as “filosofias e vãs sutilezas” a que Paulo se refere (cf. Cl 2.8), e que geralmente estão associadas ao espírito da época (zeitgeist).
Valorizar a interpretação sadia da Bíblia é um modo de obedecer a Deus.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

UMA “NOVA HERMENÊUTICA PENTECOSTAL” Breves comentários sobre a Introdução do livro Experiência e hermenêutica pentecostal

Alex Esteves da Rocha Sousa

Escrevi em minha coluna no Gospel Prime dois artigos sobre o livro Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexão e proposta para a construção de uma identidade teológica, escrito por David Mesquiati de Oliveira e Kenner Roger Cazotto Terra, o qual foi editado em 2018 pela CPAD. Meus dois artigos têm por título Teologia liberal infiltrada na Assembleia de Deus e O cavalo de troia do pentecostalismo pós-liberal.
No presente ensaio, pretendo oferecer alguns comentários acerca da Introdução do livro (p. 17-21). Tem-se aqui como alvo tanto o estudante de teologia como a liderança eclesiástica e o crente leigo, por se estar diante de um tema de interesse pastoral e doutrinário, embora igualmente teológico.
Um aspecto que podemos destacar é a consciência que os autores têm de que sua proposta teológica é uma novidade em solo brasileiro.
Com efeito, Mesquiati e Kenner têm a pretensão de, com o seu livro, apresentar ao público “uma reflexão e proposta para uma teologia pentecostal” (p. 17), algo que possa servir “como horizonte para uma teologia tipicamente pentecostal” (p. 17). Eles dizem textualmente:

“Nós entendemos que as demais propostas teológicas produzidas na literatura brasileira, mesmo aquelas escritas por pentecostais, ainda devem, em vários níveis, a caminhos metodológicos e referenciais teóricos tipicamente modernos, o que ainda não permitia afirmarmos ser teologia pentecostal. Podemos chamá-la de teologias produzidas por pentecostais, mas ainda dependentes das hermenêuticas e propostas dogmáticas que não levam às últimas consequências a importância da experiência” (p. 17).

Sendo assim, somos informados que até então não existia em terras brasileiras uma teologia pentecostal propriamente dita, o que nos leva ao entendimento lógico de que os autores não reconhecem como teologia pentecostal a que vinha sendo publicada pela própria editora que os acolheu. Não é possível deduzir outra coisa (ao menos se adotarmos a lógica moderna…).
O caráter inovador do livro de Mesquiati e Kenner estaria numa proposta que destaca a experiência como “lugar central da tradição teológica pentecostal” (p. 17), e que abandona uma hermenêutica supostamente “moderna” (baseada em postulados racionalistas, iluministas, dogmáticos) em favor de uma hermenêutica mais alinhada com a função da experiência na história pentecostal.
Os autores avisam ser a sua obra um “mosaico” (p. 17) formado por discussões que resultaram em textos acadêmicos publicados em revistas internacionalmente reconhecidas nos campos da teologia e das ciências humanas.
Conquanto se apresente como veículo de uma proposta hermenêutica, o livro de Mesquati e Kenner, ao enfatizar os pressupostos da leitura bíblica, fornece ingredientes próprios de uma epistemologia (teoria do conhecimento), porque lida com critérios pelos quais a verdade pode ser conhecida, e não exatamente com a exposição de premissas, princípios e métodos de interpretação textual.
É tentadora a proposição dos autores no sentido de que a teologia pentecostal não seria “simplesmente uma pneumatologia [doutrina do Espírito Santo], mas a discussão desde as questões mais básicas da fé cristã até as metodologias teológicas” (p. 18). Um crente pentecostal pode se acreditar contemplado ao ler palavras tão sedutoras quanto à teologia correspondente à sua confissão de fé, se entender a proposta como algo abrangente, coerente e sistemático, que associa a pneumatologia pentecostal às demais doutrinas bíblicas e até mesmo à maneira de estudá-las (“metodologias teológicas”).
Todavia, à luz do conjunto do livro, há de se ter fundado receio com relação à forma como os autores compreendem “as questões mais básicas da fé cristã” e as “metodologias teológicas” de acordo com essa orientação baseada na experiência.
De fato, Mesquiati e Kenner dizem logo em seguida que sua proposta teológica prioriza “o saber intuitivo, performático, poético, pneumático, extático, em suma, experiencial” (p. 18); e que “não desqualifica as subjetividades, os saberes afetivos e a construção teológica narrativa” (p. 18), algo que, em sua concepção, seria “comum”, ao se desvalorizar “a produção teológica narrativa, os sentidos teológicos da vivência carismática e o saber intuitivo vinculado às expressões emotivas por [se entender que são] irracionais, menores ou não dogmaticamente profundas” (p. 18).
Eles valorizam “o rompimento com o paradigma racionalista do sujeito moderno que reduziu o saber a um caminho de verificação científico-tecnocêntrico e desvalorizou outras possibilidades de acesso à realidade e construção teológica” (p. 18); e, pelo que se infere do texto, acreditam que a teologia pentecostal brasileira precisa ser criticada por ter rompido apenas discreta ou aparentemente “com perspectivas teológicas que relegam as experiências carismáticas a um saber menor” (p. 18).
Recorrendo ao sociólogo francês Michel Maffesoli, Mesquiati e Kenner chancelam a ideia de “outros tipos de racionalidade, que darão conta de acessar a realidade por caminhos menos racionalistas, mas nem por isso irracionais” (p. 18). Citando William Oliverio, que por sua vez se baseia em Amos Yong, defendem que a história da hermenêutica pentecostal deveria ser uma interpretação da Bíblia e da realidade, e não apenas a “descrição cronológica da maneira como os pentecostais leem a Bíblia” (p. 18).
Preocupa a afirmação dos autores de que sua abordagem passa por uma releitura de “conceitos caros da teologia” (p. 18). Considerando que a teologia pentecostal se acha envolvida no bojo da tradição cristã, protestante e evangélica, sendo, portanto, capítulo do Cristianismo histórico e ortodoxo, há de se indagar que conceitos caros à teologia estariam sob essa releitura.
Outro aspecto importante diz respeito à questão calvinista no meio pentecostal, fenômeno conhecido por quem acompanha as discussões contemporêanas sobre a relação entre pentecostais e reformados. Mesquiati e Kenner dizem-se preocupados com o risco de “neocalvinização do pentecostalismo” (p. 19) ou - atenção! - com a possibilidade de “as teologias protestantes estabelecidas [se tornarem] o único ou o melhor caminho para a sistematização teológica” [destaques acrescidos] (p. 19).
Não há dúvida de que é necessário a qualquer confissão de fé promover uma demarcação de suas fronteiras doutrinárias, o que se justifica por exigências de natureza espiritual, ética, litúrgica e pastoral, e não é desarrazoado que as igrejas pentecostais defendam sua identidade teológica frente à influência calvinista, haja vista especialmente as grandes diferenças entre a fé pentecostal e a fé calvinista nas esferas da pneumatologia, da soteriologia e da escatologia. No entanto, como co-herdeiros do Cristianismo histórico e ortodoxo, pentecostais e calvinistas compartilham as mesmas bases de fé, os mesmos elementos doutrinário-teológicos naquilo que é fundamental para a salvação, além de uma cosmovisão lastreada na tríade Criação, Queda e Redenção.
É necessário ter muito cuidado com essa “teologia pentecostal” que estaria disposta a substituir a teologia protestante, pois, como o próprio livro indica, Mesquiati e Kenner não estão satisfeitos com o que consideram pressupostos racionalistas (modernistas, iluministas, dogmáticos) na produção teológica pentecostal, nem escondem o propósito de avançar a questões básicas da fé cristã e à releitura de conceitos caros à teologia.
Os autores entendem que, para haver um diálogo com outras confissões teológicas, o Brasil ainda precisaria de uma “identidade teológica pentecostal” (p. 19), algo que estaria sendo construído em outros países por autores como Amos Yong, Kenneth Archer, Veli-Matti Kärkkäinen, Harold D. Hunter, Bernardo Campos e Daniel Chiquete, “entre outros” (p. 19).
Essa “construção de identidade teológica pentecostal”, segundo Mesquiati e Kenner, exigiria “releitura da história, uma proposta hermenêutica e articulação na e para a experiência” [itálico do original] (p. 19). Como se torna mais claro no decorrer da obra, não se trata apenas de uma abordagem teológica, mas também de uma revisão da historiografia cristã e uma reformulação da cosmovisão pentecostal.
No entendimento dos autores, a experiência teria lugar central na aferição da verdade revelada, sendo a experiência pentecostal - identificada com o “êxtase” (p. 19) - um elemento que na história definiria a diferença entre os pentecostais e os “típicos protestantes” (p. 19) - é por isso que eles recorrem, mais à frente, à Reforma Protestante do Séc. XVI, propondo uma revisão de sua história.
Mesquiati e Kenner afirmam que “[as] experiências extáticas [do “fiel pentecostal”] servem como lugar de reconhecimento da experiência do texto e determinam sua visão de mundo e perspectiva teológica” (p. 19). Repare-se nisto: a experiência do êxtase seria um modo de reconhecer a experiência registrada no texto, determinar a cosmovisão e determinar a perspectiva teológica.
Um dos recursos empregados por Mesquiati e Kenner é a “interdisciplinaridade” (p. 20), vista por eles como relevante em termos de acesso acadêmico “às metodologias para o estudo do texto bíblico ou construções teológicas não-racionalistas, mas [que] se adequem melhor à teologia que dê conta das subjetividades carismáticas” [destaques acrescidos] (p. 20). Eles propõem, assim, o uso de “instrumentos hermenêuticos mais adequados à leitura bíblica pentecostal” [destaques acrescidos] (p. 20).
Orientados por essa perspectiva, Mesquiati e Kenner anunciam tomar de empréstimo “as intuições da semiótica da cultura de I. [Yuri] Lótman, permitindo valorizar pressupostos epistemológicos e metodologias menos historicistas, a fim de servirem como instrumento interpretativo das Escrituras” [destaques acrescidos] (p. 20).
Nessa tarefa, os autores dizem que irão trabalhar com os “conceitos de texto, cultura, memória e narrativa, os quais permitirão fazer as devidas críticas às metodologias tradicionais que se cristalizaram na prática interpretativa, especialmente na exegese filha da Modernidade, como, também, propor novas perguntas e caminhos na compreensão dos textos” [itálico do original, negrito acrescido] (p. 20). Nisto os auxilia a interdisciplinaridade, porque esta teria gerado “profundas e inovadoras mudanças nas perguntas feitas aos textos, que giravam sempre em torno de autoria, fundo histórico e genealogia das tradições” (p. 20).
Neste ponto cabe registrar que Mesquiati e Kenner criticam em seu livro tanto o método histórico-gramatical (preferido pelos conservadores) quanto o histórico-crítico (preferido pelos liberais), como se ambos fossem semelhantemente caudatários do racionalismo modernista.
Ocorre, porém, que, além de o método histórico-gramatical ser justamente o exaltado pela Reforma Protestante, é ele que vem apontado como forma de interpretação eleita pela Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil (Capítulo I, Sobre as Sagradas Escrituras, item 6 - Mensagem), estando assim vertida a referida escolha metodológica com relação à exegese bíblica: “Nós a interpretamos sob a orientação do Espírito Santo, observando as regras gramaticais e o contexto histórico e literário”.
Salta aos olhos a seguinte proposição de Mesquiati e Kenner acerca da centralidade da Bíblia:

"Ainda preocupados com procedimentos metodológicos, é importante enfrentarmos a noção de centralidade da Bíblia, mas considerando as diferenças desse lema em relação ao Protestantismo clássico brasileiro. No mundo pentecostal, essa noção e trato com a Bíblia não ocorre preferencialmente pela via cognitiva (sistematização), mas sim pela via da experiência (sensorial), encenando as Escrituras como palavra viva, em que os textos bíblicos são performatizados, criando novas realidades. Essa visão gera uma preferência pelo gênero narrativo, tanto nas escolhas de leituras bíblicas, como na pregação. Essa ação será denominada por nós como performance da Palavra, que considera a forma como os pentecostais leem a Bíblia, bem como sua visão de mundo” [itálico do original, negrito acrescido] (p. 20).

É curiosa essa percepção dos autores de que os pentecostais interpretam as Escrituras preferencialmente pela via sensorial, e não pela via cognitiva. Tal apontamento poderia cair bem à pena de algum estudioso antipentecostal que enxerga os pentecostais como sensacionalistas e emocionalistas desatentos à objetividade do texto bíblico, mas não se concilia com aqueles que se julgam proponentes de uma genuína teologia pentecostal.
Que interpretação bíblica pode ser extraída de uma leitura mais dependente da emoção do que de pressupostos, regras e métodos preconizados pela própria Bíblia?
Mesquiati e Kenner lançam-se à tarefa (dizendo estar) munidos daquilo que chamam de “sofisticação medotológica” (p. 18), e propõem tanto uma “sofisticação científico-teológica” (p. 21) como uma “sensibilidade espiritual que capacita o uso eloquente, respeitoso, gracioso e potente da experiência, sem nos distanciarmos de nossos pais que cumpriram a sua missão a partir da sua relação com o Espírito e nos ensinaram a pensar a fé cristã enxertada na alegria e sabedoria espirituais” (p. 21).
Entretanto, com todo o respeito, a leitura do livro aponta para um tipo de conhecimento que não deflui das Escrituras, abeberando-se em teorias importadas das ciências humanas e em pressupostos que não se coadunam com as premissas fundamentais da hermenêutica bíblica.
A presente constatação não significa, nem de longe, um desprezo ao conhecimento da teologia e de suas ciências auxiliares, pois a própria teologia sistemática somente se perfaz quando se utiliza de outros ramos do saber que não o puro manejo da hermenêutica - o que se observa nestas linhas é a necessidade de adotarmos pressupostos válidos à interpretação das Escrituras, porque é de pressupostos válidos que depende todo o edifício constituído por regras e métodos de exegese.
A obra caminha orientada por premissas criticistas, por meio da desconstrução de toda a teologia pentecostal anteriormente elaborada, a qual, segundo os autores, não é teologia pentecostal propriamente dita. Mas eis que Mesquiati e Kenner surgem com uma proposta que se pretende intelectualmente sofisticada, espiritualmente sensível e metodologicamente não racionalista, sendo, em sua concepção, uma abordagem apta a dialogar com a pós-modernidade, enquanto a teologia pentecostal por eles criticada seria modernista, racionalista, submissa aos métodos próprios do dogmatismo e do fundamentalismo.
Esta é apenas uma consideração sobre a Introdução do livro. Há muito ainda a ser questionado. Com o presente texto, esperamos ter despertado ou confirmado o interesse do prezado leitor quanto a um assunto de tamanha relevância, porque, apesar de o grande público pentecostal não ter conhecimento da existência de uma obra desse tipo, seminários de teologia pentecostal já estão sob a influência de professores que defendem pressupostos de interpretação que não guardam sintonia com o nosso credo.
Uma leitura devidamente informada conduz ao entendimento de que essa “nova hermenêutica pentecostal” não é exatamente pentecostal, tampouco hermenêutica. E, se analisarmos bem, veremos que também não é propriamente nova.

Referência da obra analisada:
OLIVEIRA, David Mesquiati; TERRA, Kenner R. C. Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexão e proposta para a construção de uma identidade teológica, Rio de Janeiro: CPAD, 2018, 224p.

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segunda-feira, 8 de maio de 2017

O PENTECOSTALISMO TERIA ALGUMA RELAÇÃO COM O MONTANISMO?

Alex Esteves da Rocha Sousa*

O estudante de teologia pode deparar com professores, artigos ou livros que relacionam o Movimento Pentecostal ao Montanismo, a fim de mostrar, por meio de um “precedente histórico”, que o Pentecostalismo é herético. Discordamos veementemente desse ponto de vista. Senão vejamos:
Montanismo é o nome que se dá a um movimento sectário surgido no Séc. II da Era Cristã, sob a liderança de Montano, um ex-sacerdote pagão que a partir do ano 156 d.C. passou se apresentar como sendo o Parácleto anunciado por Jesus.
Lendo Jo 16.7-16, somos claramente informados de que o Parácleto (Consolador, Advogado) é o Espírito Santo, mas Montano dizia ser ele mesmo, interpretando essa figura prometida por Cristo como se fora um agente especial do Espírito, e não o próprio Espírito. Assim, Montano afirmava iniciar uma nova era, a dispensação do Espírito Santo.
Duas “profetisas”, Priscila (ou Prisca) e Maximila, deixando seus respectivos maridos, seguiram Montano e começaram a apregoar o fim de todas as coisas.
O termo “Montanismo” foi empregado por Teodoreto. Eusébio designou os montanistas como “frígios” ou “catafrígios”, dada a origem da seita (Frígia era uma região da Ásia Menor, província romana localizada onde hoje está a Turquia, e Montano nasceu na cidade de Ardabau, na Frígia). Epifânio chamou-os de “Pepuzianos” porque Pepuza era a cidade-sede das profecias do grupo. Já Hipólito usou o termo “Priscilianistas”, o que pode sinalizar uma subdivisão inspirada na “profetisa” Priscila.
Da Frígia o movimento disseminar-se-ia pelo Ocidente.
Pode-se afirmar que se tratava de um movimento apocalíptico, não simplesmente porque profetizava para logo a volta de Cristo - nisto os cristãos, de modo geral, estão dispostor a crer - mas, sim, em razão das implicações doutrinárias e éticas que essa expectativa fomentou.
Com efeito, um dos aspectos do movimento liderado por Montano era o ascetismo, caracterizado por uma disciplina rígida, extremista, sem entendimento, a ponto de proibir segundas núpcias ainda que legítimas, e de impor a expulsão de quem não seguisse estritamente os pesados ditames da seita.
O fanatismo residia, por exemplo, em ensinar que era pecado fugir da perseguição, ou que pecados mortais não podiam ser perdoados, mesmo que à vista de confissão.
O fundamentalismo dos montanistas era o fundamentalismo em sentido ruim, entendido como extremismo, e não como certificação das convicções em torno dos fundamentos da fé.
Montano atraiu muita gente com seu discurso restauracionista e contrário à religião cristã organizada. Seitas restauracionistas são aquelas que surgem com a promessa de voltar às práticas da Igreja Primitiva enquanto todas as demais igrejas estariam em pecado, em mundanismo, distante das origens (há várias formas de uma seita ser restauracionista, e um dos frutos disso costuma ser a arrogância espiritual).
Tertuliano (c. 155-222 d.C.), um dos Pais da Igreja, aderiu ao Montanismo por volta de 207 d.C. Era ele um intelectual (anti-intelectualismo e anti-filosofia, mas ainda assim um intelectual) de elevado gabarito, arrolado entre os Pais Polemistas e também entre os Pais Apologistas, e um dos mais importantes teólogos da Igreja Ocidental, já escrevendo em latim. Consta que Tertuliano teria levado o grupo a um ascetismo ainda maior, e causado uma subdivisão dentro dele - os tertulianistas.
De modo geral, a Igreja considerou herético o Montanismo, que decaiu no Séc. III e foi suprimido mais tarde pelo imperador Justiniano (527-565 d.C.).
Do que foi dito, entende-se que o Montanismo pode ser definido pelos seguintes aspectos: fanatismo; profetismo; apocalipsismo; restauracionismo; ascetismo. Tudo isso estava relacionado, pois as supostas profecias eram o canal de mensagens sobre o fim de todas as coisas, o que conduzia a uma busca, sem entendimento e exagerada, de santificação e de retorno ao modelo da Igreja Primitiva para que todos estivessem preparados para a Volta de Cristo.
O erro múltiplo dos montanistas procedia fundamentalmente da definição das profecias como fonte de revelação para a Igreja, quando o que se reconhece na fé cristã ortodoxa é que as Escrituras são o registro cabal, definitivo, verdadeiro e completo da Palavra de Deus. Não há possibilidade de revelações adicionais, pois a Escritura é dotada de autoridade e suficiência.
Depois de tudo o que leu até aqui, um pentecostal histórico pode reconhecer no Montanismo um precursor do Movimento Pentecostal? O Pentecostalismo Histórico é, por acaso, ascético, extremista, fanático, sectário, apocalipsista, restauracionista e/ou defensor de um profetismo que ombreia as Escrituras? A resposta é um sonoro e categórico “não”.
Dois componentes aqui merecem destaque, quais sejam, o apocalipsismo e o profetismo, considerando este autor que acerca dos demais aspectos não seria necessário gastar muito tempo, haja vista que o Movimento Pentecostal não produziu igrejas ascéticas, extremistas, fanáticas, sectárias nem restauracionistas, ainda que alguns “pentecostais” assim possam se comportar eventualmente. Fiquemos, pois, com esses dois elementos que podem talvez conduzir alguns teólogos a comparar o Pentecostalismo ao Montanismo.
Quanto ao apocalipsismo, vejamos: o Pentecostalismo surgiu com uma ênfase na doutrina da Volta Iminente de Cristo, e, no campo escatológico, se associou ao Pré-Milenismo Dispensacionalista, com o reconhecimento de uma série ordenada de eventos escatológicos sucedendo o Arrebatamento da Igreja. Foi essa corrente escatológica que veio para o Brasil com a Assembleia de Deus, uma igreja pentecostal histórica.
Em suma, a tônica da mensagem pentecostal-histórica - e especialmente assembleiana - era, na origem, de que “Cristo salva, cura, batiza com o Espírito Santo e em breve voltará”. Tirante qualquer controvérsia que se possa construir em torno da escatologia pré-milenista dispensacionalista, é apocalipsismo pregar que Jesus Cristo pode voltar a qualquer momento para buscar o Seu povo? Em que nos comparamos aos montanistas? Temos anunciado que algum de nossos líderes vem a ser um agente especial do Espírito Santo? Se alguém o faz, não tem a chancela do Pentecostalismo Clássico.
Quanto ao aspecto do profetismo, é fundamental distinguir dom de profecia de uma alegada profecia tida por revelação adicional, que era o que os montanistas faziam na prática.
O Pentecostalismo Histórico defende a contemporaneidade dos dons espirituais (dons carismáticos), entre os quais o dom de profecia, o qual, de acordo com o ensino do apóstolo Paulo aos Coríntios, é distribuído pelo Espírito Santo para “aquilo que for útil”, com o propósito de “edificação, exortação e consolação”, devendo a profecia ser julgada pelos demais (é para isso, por exemplo, que existe o dom de discernimento de espíritos). Seria o Pentecostalismo Histórico uma heresia de tipo montanista por entender que os dons espirituais, como o de profecia, estão em vigor? Não há motivos teologicamente robustos para se admitir que os dons cessaram.
Este artigo não é o espaço para tratarmos de Pneumatologia nem Escatologia, seções da Teologia Sistemática nas quais se inserem, respectivamente, os debates aqui referidos acerca da Volta de Cristo e da obra do Espírito, cabendo apenas obsevar que merecem críticas severas quaisquer ilações que busquem ligar o Pentecostalismo Histórico ao Montanismo. Mas ainda cabe uma consideração de natureza histórica. Confira-se:
O historiador JUSTO L. GONZALEZ (1986: 125) afirma que, na época do surgimento do Montanismo, havia nas igrejas o costume de ouvir aqueles que tinham o dom de profecia, julgando tais mensagens à luz das prescrições da doutrina cristã.
Desse modo, ainda conforme o relato de JUSTO L. GONZÁLEZ, não foi o “profetismo” o vício dos montanistas, mas seu desvio doutrinário, porque diziam ter nascido, com a aparição de Montano, uma nova etapa da História da Igreja: em sua concepção, se Cristo trouxera, com o Sermão da Montanha,  uma nova doutrina, mais rígida que a Lei de Moisés, Montano teria vindo com uma moral mais elevada que a moral manifesta na vida da Igreja. Essa seria uma tentativa (errada, frise-se) de reacender a esperança cristã, diante de uma Igreja que eles tinham por mundana, pecadora, corrompida.
Resumidamente, não há nenhuma relação teológica, doutrinária nem histórica entre montanistas e pentecostais. Neste blog, buscaremos tratar de aspectos teológicos, doutrinários e históricos do Pentecostalismo Clássico.
Há, é verdade, pontos doutrinários, teológicos e até históricos em que o debate quanto ao Pentecostalismo pode ganhar contornos mais disputados, mas a aproximação canhestra com uma seita profundamente herética é algo que precisa ser rechaçado com veemência. Os antipentecostais devem procurar argumento melhor.

*Alex Esteves da Rocha Sousa é Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia. Bacharel em Direito. Cursou disciplinas de bacharel em teologia na Faculdade Theológica – FATHEL (presencial) e na Faculdade Internacional de Teologia Reformada – FITRef (à distância), bem como disciplinas de Especialização em Estudos Teológicos no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper – CPAJ (à distância), vinculado à Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor de jovens na escola bíblica e um dos pastores auxiliares da Assembleia de Deus na Pituba. Mantém os blogs alexesteves.blogspot.com e pentecostalhistorico.blogspot.com, além da página Pentecostal Histórico no Facebook. E-mail: alexesteves.rocha@gmail.com.

MATERIAL PESQUISADO:

CHAMPLIN, R. N. ENCICLOPÉDIA DE BÍBLIA, FILOSOFIA E TEOLOGIA. São Paulo: HAGNOS. Volumes 1, 4 e 6. 12. ed., 2014.

GONZALEZ, J. L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo. A Era dos Mártires. V. 1. 3. ed., São Paulo: Vida Nova, 1986, 177p.

GRENTZ, Stanley J. et al. DICIONÁRIO DE TEOLOGIA. São Paulo: Vida, 2000, 142p.
   


sexta-feira, 5 de maio de 2017

Pentecostalismo Histórico

Alex Esteves da Rocha Sousa

O Pentecostalismo Histórico, Clássico ou Tradicional, também conhecido como "Primeira Onda do Pentecostalismo" (PAUL FRESTON), é, segundo estudiosos, o segmento pentecostal formado pelas igrejas Congregação Cristã no Brasil (1910) e Assembleia de Deus (1911), as quais são fruto direto do Movimento Pentecostal (1906), ocorrido nos Estados Unidos.
A Congregação Cristã no Brasil foi estabelecida pelo italiano Luigi Francescon, que, em razão da naturalização americana, passou a se chamar Louis Francescon. Essa igreja foi criada em São Paulo, cresceu muito, mas até hoje adota uma postura tendente ao sectarismo, com uma interpretação literal das Escrituras e distanciamento em relação à comunidade evangélica e à inserção social e política, com um discurso exclusivista. Também se caracteriza por forte apego aos costumes de certa moral social, uso do véu - daí ser chamada de "igreja do véu" -, ósculo santo, não ordenação de pastores (substituídos por "anciãos"), pregação contra os dízimos e ausência de evangelização pública. É, curiosamente, uma igreja adepta da doutrina da predestinação semelhantemente aos calvinistas, mas sem a sofisticação teológico-doutrinária destes, mesmo porque é avessa ao estudo teológico.
A Assembleia de Deus foi estabelecida pelos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, ambos impactados pelo Movimento Pentecostal nos Estados Unidos, onde residiam na época. Crendo na doutrina do batismo no Espírito Santo evidenciado por línguas (glossolalia), aqueles dois homens vieram ao Brasil orientados por uma profecia, que lhes indicou o Estado do Pará como campo missionário. A partir de Belém/PA, o trabalho ganhou todas as regiões do país, tornando essa a maior denominação evangélica no Brasil.
Basicamente, o Pentecostalismo Histórico se caracteriza pela ênfase na doutrina do batismo no Espírito Santo com a evidência física inicial do falar em línguas. Essa é a marca histórica desse movimento. Em sua origem, a mensagem pentecostal estava intimamente vinculada à pregação da iminente volta de Cristo, entendendo os pioneiros - tanto os dos Estados Unidos como os do Brasil - que a igreja do arrebatamento ou da Última Hora seria cheia de dons espirituais, uma igreja fiel como a de Filadélfia, em Apocalipse. Outros aspectos importantes eram o Pré-Milenismo Dispensacionalista (aquele da Bíblia Scofield, de 1909); o fundamentalismo, como segmento cristão protestante que combatia o Liberalismo Teológico; destaque para um padrão de usos e costumes como sinal de santidade; e certo dualismo entre a fé e as coisas "do mundo", o que provocou, por muito tempo - e, ainda, em muitos lugares - dificuldades quanto aos estudos, à formação teológica, à intelectualidade, à cultura, à atividade política, às artes.
Há forte ligação entre o Pentecostalismo Histórico e o Movimento Holiness, sendo ambos herdeiros do Wesleyanismo, assim como o Metodismo. Se o Movimento Holiness (Movimento de Santidade) e os metodistas destacavam o conceito de santidade e perfeição cristã como "segunda bênção", os pentecostais passaram a falar no batismo no Espírito Santo como essa segunda bênção, entendendo-o como revestimento de poder. Todos esses - de certa forma - frutos do Wesleyanismo tinham em comum a busca de piedade pessoal, espiritualidade mais viva, ativismo do crente, oração fervorosa, experiências com Deus, valorização das emoções e pregação evangelística.
Sem dúvida, é importante lembrar que tanto os pentecostais como os metodistas e os holiness são cristãos, protestantes e evangélicos, e que há não apenas uma linha histórica entre tais grupamentos e o Cristianismo Protestante e Evangélico, mas uma linha credal, já que todos creem nas verdades fundamentais da Fé Cristã, defendem os Cinco Solas (da Reforma Protestante), são críticos do fetichismo e do comércio da fé, e vêm de uma herança bibliocêntrica, cristocêntrica, ativista e conversionista. 
Doutrinariamente, os pentecostais históricos, em especial, tendem a ser arminianos e dispensacionalistas, o que, além de sua doutrina pneumatológica, os distancia dos reformados (calvinistas). Entretanto, é de se entender que tais questões não afastam esses grupos de maneira nenhuma naquilo que é fundamental, a saber, a salvação exclusivamente na Pessoa do SENHOR Jesus Cristo, pela graça, mediante a fé.
Este autor é pentecostal histórico, membro da Assembleia de Deus, e entende ser de todo útil - e mesmo necessário - que aprofundemos nossa cultura pentecostal, lendo sobre nossa história e herança, conhecendo nomes, datas, conceitos, doutrinas, valores, autores de referência, confissões de fé, a fim de que tenhamos um repertório amplo e consistente sobre nossa identidade.
Ademais, é importante distinguir os pontos de doutrina em que eventualmente carecemos de maior conhecimento e debate, além de práticas heterodoxas que infelizmente insistem em permanecer entre nós, assumindo, por vezes, a dianteira no que toca ao estereótipo pentecostal. 
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Precisamos ao menos trabalhar por responder a tais perguntas. Se somos, de fato, pentecostais históricos, o que é o Pentecostalismo Histórico?

O VALOR DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Quando cheguei ao curso de direito, em 1996, logo me interessei pelas noções de hermenêutica jurídica, apresentadas na Introdução ao Estud...