segunda-feira, 8 de maio de 2017

O PENTECOSTALISMO TERIA ALGUMA RELAÇÃO COM O MONTANISMO?

Alex Esteves da Rocha Sousa*

O estudante de teologia pode deparar com professores, artigos ou livros que relacionam o Movimento Pentecostal ao Montanismo, a fim de mostrar, por meio de um “precedente histórico”, que o Pentecostalismo é herético. Discordamos veementemente desse ponto de vista. Senão vejamos:
Montanismo é o nome que se dá a um movimento sectário surgido no Séc. II da Era Cristã, sob a liderança de Montano, um ex-sacerdote pagão que a partir do ano 156 d.C. passou se apresentar como sendo o Parácleto anunciado por Jesus.
Lendo Jo 16.7-16, somos claramente informados de que o Parácleto (Consolador, Advogado) é o Espírito Santo, mas Montano dizia ser ele mesmo, interpretando essa figura prometida por Cristo como se fora um agente especial do Espírito, e não o próprio Espírito. Assim, Montano afirmava iniciar uma nova era, a dispensação do Espírito Santo.
Duas “profetisas”, Priscila (ou Prisca) e Maximila, deixando seus respectivos maridos, seguiram Montano e começaram a apregoar o fim de todas as coisas.
O termo “Montanismo” foi empregado por Teodoreto. Eusébio designou os montanistas como “frígios” ou “catafrígios”, dada a origem da seita (Frígia era uma região da Ásia Menor, província romana localizada onde hoje está a Turquia, e Montano nasceu na cidade de Ardabau, na Frígia). Epifânio chamou-os de “Pepuzianos” porque Pepuza era a cidade-sede das profecias do grupo. Já Hipólito usou o termo “Priscilianistas”, o que pode sinalizar uma subdivisão inspirada na “profetisa” Priscila.
Da Frígia o movimento disseminar-se-ia pelo Ocidente.
Pode-se afirmar que se tratava de um movimento apocalíptico, não simplesmente porque profetizava para logo a volta de Cristo - nisto os cristãos, de modo geral, estão dispostor a crer - mas, sim, em razão das implicações doutrinárias e éticas que essa expectativa fomentou.
Com efeito, um dos aspectos do movimento liderado por Montano era o ascetismo, caracterizado por uma disciplina rígida, extremista, sem entendimento, a ponto de proibir segundas núpcias ainda que legítimas, e de impor a expulsão de quem não seguisse estritamente os pesados ditames da seita.
O fanatismo residia, por exemplo, em ensinar que era pecado fugir da perseguição, ou que pecados mortais não podiam ser perdoados, mesmo que à vista de confissão.
O fundamentalismo dos montanistas era o fundamentalismo em sentido ruim, entendido como extremismo, e não como certificação das convicções em torno dos fundamentos da fé.
Montano atraiu muita gente com seu discurso restauracionista e contrário à religião cristã organizada. Seitas restauracionistas são aquelas que surgem com a promessa de voltar às práticas da Igreja Primitiva enquanto todas as demais igrejas estariam em pecado, em mundanismo, distante das origens (há várias formas de uma seita ser restauracionista, e um dos frutos disso costuma ser a arrogância espiritual).
Tertuliano (c. 155-222 d.C.), um dos Pais da Igreja, aderiu ao Montanismo por volta de 207 d.C. Era ele um intelectual (anti-intelectualismo e anti-filosofia, mas ainda assim um intelectual) de elevado gabarito, arrolado entre os Pais Polemistas e também entre os Pais Apologistas, e um dos mais importantes teólogos da Igreja Ocidental, já escrevendo em latim. Consta que Tertuliano teria levado o grupo a um ascetismo ainda maior, e causado uma subdivisão dentro dele - os tertulianistas.
De modo geral, a Igreja considerou herético o Montanismo, que decaiu no Séc. III e foi suprimido mais tarde pelo imperador Justiniano (527-565 d.C.).
Do que foi dito, entende-se que o Montanismo pode ser definido pelos seguintes aspectos: fanatismo; profetismo; apocalipsismo; restauracionismo; ascetismo. Tudo isso estava relacionado, pois as supostas profecias eram o canal de mensagens sobre o fim de todas as coisas, o que conduzia a uma busca, sem entendimento e exagerada, de santificação e de retorno ao modelo da Igreja Primitiva para que todos estivessem preparados para a Volta de Cristo.
O erro múltiplo dos montanistas procedia fundamentalmente da definição das profecias como fonte de revelação para a Igreja, quando o que se reconhece na fé cristã ortodoxa é que as Escrituras são o registro cabal, definitivo, verdadeiro e completo da Palavra de Deus. Não há possibilidade de revelações adicionais, pois a Escritura é dotada de autoridade e suficiência.
Depois de tudo o que leu até aqui, um pentecostal histórico pode reconhecer no Montanismo um precursor do Movimento Pentecostal? O Pentecostalismo Histórico é, por acaso, ascético, extremista, fanático, sectário, apocalipsista, restauracionista e/ou defensor de um profetismo que ombreia as Escrituras? A resposta é um sonoro e categórico “não”.
Dois componentes aqui merecem destaque, quais sejam, o apocalipsismo e o profetismo, considerando este autor que acerca dos demais aspectos não seria necessário gastar muito tempo, haja vista que o Movimento Pentecostal não produziu igrejas ascéticas, extremistas, fanáticas, sectárias nem restauracionistas, ainda que alguns “pentecostais” assim possam se comportar eventualmente. Fiquemos, pois, com esses dois elementos que podem talvez conduzir alguns teólogos a comparar o Pentecostalismo ao Montanismo.
Quanto ao apocalipsismo, vejamos: o Pentecostalismo surgiu com uma ênfase na doutrina da Volta Iminente de Cristo, e, no campo escatológico, se associou ao Pré-Milenismo Dispensacionalista, com o reconhecimento de uma série ordenada de eventos escatológicos sucedendo o Arrebatamento da Igreja. Foi essa corrente escatológica que veio para o Brasil com a Assembleia de Deus, uma igreja pentecostal histórica.
Em suma, a tônica da mensagem pentecostal-histórica - e especialmente assembleiana - era, na origem, de que “Cristo salva, cura, batiza com o Espírito Santo e em breve voltará”. Tirante qualquer controvérsia que se possa construir em torno da escatologia pré-milenista dispensacionalista, é apocalipsismo pregar que Jesus Cristo pode voltar a qualquer momento para buscar o Seu povo? Em que nos comparamos aos montanistas? Temos anunciado que algum de nossos líderes vem a ser um agente especial do Espírito Santo? Se alguém o faz, não tem a chancela do Pentecostalismo Clássico.
Quanto ao aspecto do profetismo, é fundamental distinguir dom de profecia de uma alegada profecia tida por revelação adicional, que era o que os montanistas faziam na prática.
O Pentecostalismo Histórico defende a contemporaneidade dos dons espirituais (dons carismáticos), entre os quais o dom de profecia, o qual, de acordo com o ensino do apóstolo Paulo aos Coríntios, é distribuído pelo Espírito Santo para “aquilo que for útil”, com o propósito de “edificação, exortação e consolação”, devendo a profecia ser julgada pelos demais (é para isso, por exemplo, que existe o dom de discernimento de espíritos). Seria o Pentecostalismo Histórico uma heresia de tipo montanista por entender que os dons espirituais, como o de profecia, estão em vigor? Não há motivos teologicamente robustos para se admitir que os dons cessaram.
Este artigo não é o espaço para tratarmos de Pneumatologia nem Escatologia, seções da Teologia Sistemática nas quais se inserem, respectivamente, os debates aqui referidos acerca da Volta de Cristo e da obra do Espírito, cabendo apenas obsevar que merecem críticas severas quaisquer ilações que busquem ligar o Pentecostalismo Histórico ao Montanismo. Mas ainda cabe uma consideração de natureza histórica. Confira-se:
O historiador JUSTO L. GONZALEZ (1986: 125) afirma que, na época do surgimento do Montanismo, havia nas igrejas o costume de ouvir aqueles que tinham o dom de profecia, julgando tais mensagens à luz das prescrições da doutrina cristã.
Desse modo, ainda conforme o relato de JUSTO L. GONZÁLEZ, não foi o “profetismo” o vício dos montanistas, mas seu desvio doutrinário, porque diziam ter nascido, com a aparição de Montano, uma nova etapa da História da Igreja: em sua concepção, se Cristo trouxera, com o Sermão da Montanha,  uma nova doutrina, mais rígida que a Lei de Moisés, Montano teria vindo com uma moral mais elevada que a moral manifesta na vida da Igreja. Essa seria uma tentativa (errada, frise-se) de reacender a esperança cristã, diante de uma Igreja que eles tinham por mundana, pecadora, corrompida.
Resumidamente, não há nenhuma relação teológica, doutrinária nem histórica entre montanistas e pentecostais. Neste blog, buscaremos tratar de aspectos teológicos, doutrinários e históricos do Pentecostalismo Clássico.
Há, é verdade, pontos doutrinários, teológicos e até históricos em que o debate quanto ao Pentecostalismo pode ganhar contornos mais disputados, mas a aproximação canhestra com uma seita profundamente herética é algo que precisa ser rechaçado com veemência. Os antipentecostais devem procurar argumento melhor.

*Alex Esteves da Rocha Sousa é Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia. Bacharel em Direito. Cursou disciplinas de bacharel em teologia na Faculdade Theológica – FATHEL (presencial) e na Faculdade Internacional de Teologia Reformada – FITRef (à distância), bem como disciplinas de Especialização em Estudos Teológicos no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper – CPAJ (à distância), vinculado à Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor de jovens na escola bíblica e um dos pastores auxiliares da Assembleia de Deus na Pituba. Mantém os blogs alexesteves.blogspot.com e pentecostalhistorico.blogspot.com, além da página Pentecostal Histórico no Facebook. E-mail: alexesteves.rocha@gmail.com.

MATERIAL PESQUISADO:

CHAMPLIN, R. N. ENCICLOPÉDIA DE BÍBLIA, FILOSOFIA E TEOLOGIA. São Paulo: HAGNOS. Volumes 1, 4 e 6. 12. ed., 2014.

GONZALEZ, J. L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo. A Era dos Mártires. V. 1. 3. ed., São Paulo: Vida Nova, 1986, 177p.

GRENTZ, Stanley J. et al. DICIONÁRIO DE TEOLOGIA. São Paulo: Vida, 2000, 142p.
   


sexta-feira, 5 de maio de 2017

Pentecostalismo Histórico

Alex Esteves da Rocha Sousa

O Pentecostalismo Histórico, Clássico ou Tradicional, também conhecido como "Primeira Onda do Pentecostalismo" (PAUL FRESTON), é, segundo estudiosos, o segmento pentecostal formado pelas igrejas Congregação Cristã no Brasil (1910) e Assembleia de Deus (1911), as quais são fruto direto do Movimento Pentecostal (1906), ocorrido nos Estados Unidos.
A Congregação Cristã no Brasil foi estabelecida pelo italiano Luigi Francescon, que, em razão da naturalização americana, passou a se chamar Louis Francescon. Essa igreja foi criada em São Paulo, cresceu muito, mas até hoje adota uma postura tendente ao sectarismo, com uma interpretação literal das Escrituras e distanciamento em relação à comunidade evangélica e à inserção social e política, com um discurso exclusivista. Também se caracteriza por forte apego aos costumes de certa moral social, uso do véu - daí ser chamada de "igreja do véu" -, ósculo santo, não ordenação de pastores (substituídos por "anciãos"), pregação contra os dízimos e ausência de evangelização pública. É, curiosamente, uma igreja adepta da doutrina da predestinação semelhantemente aos calvinistas, mas sem a sofisticação teológico-doutrinária destes, mesmo porque é avessa ao estudo teológico.
A Assembleia de Deus foi estabelecida pelos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, ambos impactados pelo Movimento Pentecostal nos Estados Unidos, onde residiam na época. Crendo na doutrina do batismo no Espírito Santo evidenciado por línguas (glossolalia), aqueles dois homens vieram ao Brasil orientados por uma profecia, que lhes indicou o Estado do Pará como campo missionário. A partir de Belém/PA, o trabalho ganhou todas as regiões do país, tornando essa a maior denominação evangélica no Brasil.
Basicamente, o Pentecostalismo Histórico se caracteriza pela ênfase na doutrina do batismo no Espírito Santo com a evidência física inicial do falar em línguas. Essa é a marca histórica desse movimento. Em sua origem, a mensagem pentecostal estava intimamente vinculada à pregação da iminente volta de Cristo, entendendo os pioneiros - tanto os dos Estados Unidos como os do Brasil - que a igreja do arrebatamento ou da Última Hora seria cheia de dons espirituais, uma igreja fiel como a de Filadélfia, em Apocalipse. Outros aspectos importantes eram o Pré-Milenismo Dispensacionalista (aquele da Bíblia Scofield, de 1909); o fundamentalismo, como segmento cristão protestante que combatia o Liberalismo Teológico; destaque para um padrão de usos e costumes como sinal de santidade; e certo dualismo entre a fé e as coisas "do mundo", o que provocou, por muito tempo - e, ainda, em muitos lugares - dificuldades quanto aos estudos, à formação teológica, à intelectualidade, à cultura, à atividade política, às artes.
Há forte ligação entre o Pentecostalismo Histórico e o Movimento Holiness, sendo ambos herdeiros do Wesleyanismo, assim como o Metodismo. Se o Movimento Holiness (Movimento de Santidade) e os metodistas destacavam o conceito de santidade e perfeição cristã como "segunda bênção", os pentecostais passaram a falar no batismo no Espírito Santo como essa segunda bênção, entendendo-o como revestimento de poder. Todos esses - de certa forma - frutos do Wesleyanismo tinham em comum a busca de piedade pessoal, espiritualidade mais viva, ativismo do crente, oração fervorosa, experiências com Deus, valorização das emoções e pregação evangelística.
Sem dúvida, é importante lembrar que tanto os pentecostais como os metodistas e os holiness são cristãos, protestantes e evangélicos, e que há não apenas uma linha histórica entre tais grupamentos e o Cristianismo Protestante e Evangélico, mas uma linha credal, já que todos creem nas verdades fundamentais da Fé Cristã, defendem os Cinco Solas (da Reforma Protestante), são críticos do fetichismo e do comércio da fé, e vêm de uma herança bibliocêntrica, cristocêntrica, ativista e conversionista. 
Doutrinariamente, os pentecostais históricos, em especial, tendem a ser arminianos e dispensacionalistas, o que, além de sua doutrina pneumatológica, os distancia dos reformados (calvinistas). Entretanto, é de se entender que tais questões não afastam esses grupos de maneira nenhuma naquilo que é fundamental, a saber, a salvação exclusivamente na Pessoa do SENHOR Jesus Cristo, pela graça, mediante a fé.
Este autor é pentecostal histórico, membro da Assembleia de Deus, e entende ser de todo útil - e mesmo necessário - que aprofundemos nossa cultura pentecostal, lendo sobre nossa história e herança, conhecendo nomes, datas, conceitos, doutrinas, valores, autores de referência, confissões de fé, a fim de que tenhamos um repertório amplo e consistente sobre nossa identidade.
Ademais, é importante distinguir os pontos de doutrina em que eventualmente carecemos de maior conhecimento e debate, além de práticas heterodoxas que infelizmente insistem em permanecer entre nós, assumindo, por vezes, a dianteira no que toca ao estereótipo pentecostal. 
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Precisamos ao menos trabalhar por responder a tais perguntas. Se somos, de fato, pentecostais históricos, o que é o Pentecostalismo Histórico?

O VALOR DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Quando cheguei ao curso de direito, em 1996, logo me interessei pelas noções de hermenêutica jurídica, apresentadas na Introdução ao Estud...