Alex Esteves da Rocha Sousa
Escrevi em minha coluna no Gospel Prime dois artigos sobre o livro Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexão e proposta para a construção de uma identidade teológica, escrito por David Mesquiati de Oliveira e Kenner Roger Cazotto Terra, o qual foi editado em 2018 pela CPAD. Meus dois artigos têm por título Teologia liberal infiltrada na Assembleia de Deus e O cavalo de troia do pentecostalismo pós-liberal.
No presente ensaio, pretendo oferecer alguns comentários acerca da Introdução do livro (p. 17-21). Tem-se aqui como alvo tanto o estudante de teologia como a liderança eclesiástica e o crente leigo, por se estar diante de um tema de interesse pastoral e doutrinário, embora igualmente teológico.
Um aspecto que podemos destacar é a consciência que os autores têm de que sua proposta teológica é uma novidade em solo brasileiro.
Com efeito, Mesquiati e Kenner têm a pretensão de, com o seu livro, apresentar ao público “uma reflexão e proposta para uma teologia pentecostal” (p. 17), algo que possa servir “como horizonte para uma teologia tipicamente pentecostal” (p. 17). Eles dizem textualmente:
“Nós entendemos que as demais propostas teológicas produzidas na literatura brasileira, mesmo aquelas escritas por pentecostais, ainda devem, em vários níveis, a caminhos metodológicos e referenciais teóricos tipicamente modernos, o que ainda não permitia afirmarmos ser teologia pentecostal. Podemos chamá-la de teologias produzidas por pentecostais, mas ainda dependentes das hermenêuticas e propostas dogmáticas que não levam às últimas consequências a importância da experiência” (p. 17).
Sendo assim, somos informados que até então não existia em terras brasileiras uma teologia pentecostal propriamente dita, o que nos leva ao entendimento lógico de que os autores não reconhecem como teologia pentecostal a que vinha sendo publicada pela própria editora que os acolheu. Não é possível deduzir outra coisa (ao menos se adotarmos a lógica moderna…).
O caráter inovador do livro de Mesquiati e Kenner estaria numa proposta que destaca a experiência como “lugar central da tradição teológica pentecostal” (p. 17), e que abandona uma hermenêutica supostamente “moderna” (baseada em postulados racionalistas, iluministas, dogmáticos) em favor de uma hermenêutica mais alinhada com a função da experiência na história pentecostal.
Os autores avisam ser a sua obra um “mosaico” (p. 17) formado por discussões que resultaram em textos acadêmicos publicados em revistas internacionalmente reconhecidas nos campos da teologia e das ciências humanas.
Conquanto se apresente como veículo de uma proposta hermenêutica, o livro de Mesquati e Kenner, ao enfatizar os pressupostos da leitura bíblica, fornece ingredientes próprios de uma epistemologia (teoria do conhecimento), porque lida com critérios pelos quais a verdade pode ser conhecida, e não exatamente com a exposição de premissas, princípios e métodos de interpretação textual.
É tentadora a proposição dos autores no sentido de que a teologia pentecostal não seria “simplesmente uma pneumatologia [doutrina do Espírito Santo], mas a discussão desde as questões mais básicas da fé cristã até as metodologias teológicas” (p. 18). Um crente pentecostal pode se acreditar contemplado ao ler palavras tão sedutoras quanto à teologia correspondente à sua confissão de fé, se entender a proposta como algo abrangente, coerente e sistemático, que associa a pneumatologia pentecostal às demais doutrinas bíblicas e até mesmo à maneira de estudá-las (“metodologias teológicas”).
Todavia, à luz do conjunto do livro, há de se ter fundado receio com relação à forma como os autores compreendem “as questões mais básicas da fé cristã” e as “metodologias teológicas” de acordo com essa orientação baseada na experiência.
De fato, Mesquiati e Kenner dizem logo em seguida que sua proposta teológica prioriza “o saber intuitivo, performático, poético, pneumático, extático, em suma, experiencial” (p. 18); e que “não desqualifica as subjetividades, os saberes afetivos e a construção teológica narrativa” (p. 18), algo que, em sua concepção, seria “comum”, ao se desvalorizar “a produção teológica narrativa, os sentidos teológicos da vivência carismática e o saber intuitivo vinculado às expressões emotivas por [se entender que são] irracionais, menores ou não dogmaticamente profundas” (p. 18).
Eles valorizam “o rompimento com o paradigma racionalista do sujeito moderno que reduziu o saber a um caminho de verificação científico-tecnocêntrico e desvalorizou outras possibilidades de acesso à realidade e construção teológica” (p. 18); e, pelo que se infere do texto, acreditam que a teologia pentecostal brasileira precisa ser criticada por ter rompido apenas discreta ou aparentemente “com perspectivas teológicas que relegam as experiências carismáticas a um saber menor” (p. 18).
Recorrendo ao sociólogo francês Michel Maffesoli, Mesquiati e Kenner chancelam a ideia de “outros tipos de racionalidade, que darão conta de acessar a realidade por caminhos menos racionalistas, mas nem por isso irracionais” (p. 18). Citando William Oliverio, que por sua vez se baseia em Amos Yong, defendem que a história da hermenêutica pentecostal deveria ser uma interpretação da Bíblia e da realidade, e não apenas a “descrição cronológica da maneira como os pentecostais leem a Bíblia” (p. 18).
Preocupa a afirmação dos autores de que sua abordagem passa por uma releitura de “conceitos caros da teologia” (p. 18). Considerando que a teologia pentecostal se acha envolvida no bojo da tradição cristã, protestante e evangélica, sendo, portanto, capítulo do Cristianismo histórico e ortodoxo, há de se indagar que conceitos caros à teologia estariam sob essa releitura.
Outro aspecto importante diz respeito à questão calvinista no meio pentecostal, fenômeno conhecido por quem acompanha as discussões contemporêanas sobre a relação entre pentecostais e reformados. Mesquiati e Kenner dizem-se preocupados com o risco de “neocalvinização do pentecostalismo” (p. 19) ou - atenção! - com a possibilidade de “as teologias protestantes estabelecidas [se tornarem] o único ou o melhor caminho para a sistematização teológica” [destaques acrescidos] (p. 19).
Não há dúvida de que é necessário a qualquer confissão de fé promover uma demarcação de suas fronteiras doutrinárias, o que se justifica por exigências de natureza espiritual, ética, litúrgica e pastoral, e não é desarrazoado que as igrejas pentecostais defendam sua identidade teológica frente à influência calvinista, haja vista especialmente as grandes diferenças entre a fé pentecostal e a fé calvinista nas esferas da pneumatologia, da soteriologia e da escatologia. No entanto, como co-herdeiros do Cristianismo histórico e ortodoxo, pentecostais e calvinistas compartilham as mesmas bases de fé, os mesmos elementos doutrinário-teológicos naquilo que é fundamental para a salvação, além de uma cosmovisão lastreada na tríade Criação, Queda e Redenção.
É necessário ter muito cuidado com essa “teologia pentecostal” que estaria disposta a substituir a teologia protestante, pois, como o próprio livro indica, Mesquiati e Kenner não estão satisfeitos com o que consideram pressupostos racionalistas (modernistas, iluministas, dogmáticos) na produção teológica pentecostal, nem escondem o propósito de avançar a questões básicas da fé cristã e à releitura de conceitos caros à teologia.
Os autores entendem que, para haver um diálogo com outras confissões teológicas, o Brasil ainda precisaria de uma “identidade teológica pentecostal” (p. 19), algo que estaria sendo construído em outros países por autores como Amos Yong, Kenneth Archer, Veli-Matti Kärkkäinen, Harold D. Hunter, Bernardo Campos e Daniel Chiquete, “entre outros” (p. 19).
Essa “construção de identidade teológica pentecostal”, segundo Mesquiati e Kenner, exigiria “releitura da história, uma proposta hermenêutica e articulação na e para a experiência” [itálico do original] (p. 19). Como se torna mais claro no decorrer da obra, não se trata apenas de uma abordagem teológica, mas também de uma revisão da historiografia cristã e uma reformulação da cosmovisão pentecostal.
No entendimento dos autores, a experiência teria lugar central na aferição da verdade revelada, sendo a experiência pentecostal - identificada com o “êxtase” (p. 19) - um elemento que na história definiria a diferença entre os pentecostais e os “típicos protestantes” (p. 19) - é por isso que eles recorrem, mais à frente, à Reforma Protestante do Séc. XVI, propondo uma revisão de sua história.
Mesquiati e Kenner afirmam que “[as] experiências extáticas [do “fiel pentecostal”] servem como lugar de reconhecimento da experiência do texto e determinam sua visão de mundo e perspectiva teológica” (p. 19). Repare-se nisto: a experiência do êxtase seria um modo de reconhecer a experiência registrada no texto, determinar a cosmovisão e determinar a perspectiva teológica.
Um dos recursos empregados por Mesquiati e Kenner é a “interdisciplinaridade” (p. 20), vista por eles como relevante em termos de acesso acadêmico “às metodologias para o estudo do texto bíblico ou construções teológicas não-racionalistas, mas [que] se adequem melhor à teologia que dê conta das subjetividades carismáticas” [destaques acrescidos] (p. 20). Eles propõem, assim, o uso de “instrumentos hermenêuticos mais adequados à leitura bíblica pentecostal” [destaques acrescidos] (p. 20).
Orientados por essa perspectiva, Mesquiati e Kenner anunciam tomar de empréstimo “as intuições da semiótica da cultura de I. [Yuri] Lótman, permitindo valorizar pressupostos epistemológicos e metodologias menos historicistas, a fim de servirem como instrumento interpretativo das Escrituras” [destaques acrescidos] (p. 20).
Nessa tarefa, os autores dizem que irão trabalhar com os “conceitos de texto, cultura, memória e narrativa, os quais permitirão fazer as devidas críticas às metodologias tradicionais que se cristalizaram na prática interpretativa, especialmente na exegese filha da Modernidade, como, também, propor novas perguntas e caminhos na compreensão dos textos” [itálico do original, negrito acrescido] (p. 20). Nisto os auxilia a interdisciplinaridade, porque esta teria gerado “profundas e inovadoras mudanças nas perguntas feitas aos textos, que giravam sempre em torno de autoria, fundo histórico e genealogia das tradições” (p. 20).
Neste ponto cabe registrar que Mesquiati e Kenner criticam em seu livro tanto o método histórico-gramatical (preferido pelos conservadores) quanto o histórico-crítico (preferido pelos liberais), como se ambos fossem semelhantemente caudatários do racionalismo modernista.
Ocorre, porém, que, além de o método histórico-gramatical ser justamente o exaltado pela Reforma Protestante, é ele que vem apontado como forma de interpretação eleita pela Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil (Capítulo I, Sobre as Sagradas Escrituras, item 6 - Mensagem), estando assim vertida a referida escolha metodológica com relação à exegese bíblica: “Nós a interpretamos sob a orientação do Espírito Santo, observando as regras gramaticais e o contexto histórico e literário”.
Salta aos olhos a seguinte proposição de Mesquiati e Kenner acerca da centralidade da Bíblia:
"Ainda preocupados com procedimentos metodológicos, é importante enfrentarmos a noção de centralidade da Bíblia, mas considerando as diferenças desse lema em relação ao Protestantismo clássico brasileiro. No mundo pentecostal, essa noção e trato com a Bíblia não ocorre preferencialmente pela via cognitiva (sistematização), mas sim pela via da experiência (sensorial), encenando as Escrituras como palavra viva, em que os textos bíblicos são performatizados, criando novas realidades. Essa visão gera uma preferência pelo gênero narrativo, tanto nas escolhas de leituras bíblicas, como na pregação. Essa ação será denominada por nós como performance da Palavra, que considera a forma como os pentecostais leem a Bíblia, bem como sua visão de mundo” [itálico do original, negrito acrescido] (p. 20).
É curiosa essa percepção dos autores de que os pentecostais interpretam as Escrituras preferencialmente pela via sensorial, e não pela via cognitiva. Tal apontamento poderia cair bem à pena de algum estudioso antipentecostal que enxerga os pentecostais como sensacionalistas e emocionalistas desatentos à objetividade do texto bíblico, mas não se concilia com aqueles que se julgam proponentes de uma genuína teologia pentecostal.
Que interpretação bíblica pode ser extraída de uma leitura mais dependente da emoção do que de pressupostos, regras e métodos preconizados pela própria Bíblia?
Mesquiati e Kenner lançam-se à tarefa (dizendo estar) munidos daquilo que chamam de “sofisticação medotológica” (p. 18), e propõem tanto uma “sofisticação científico-teológica” (p. 21) como uma “sensibilidade espiritual que capacita o uso eloquente, respeitoso, gracioso e potente da experiência, sem nos distanciarmos de nossos pais que cumpriram a sua missão a partir da sua relação com o Espírito e nos ensinaram a pensar a fé cristã enxertada na alegria e sabedoria espirituais” (p. 21).
Entretanto, com todo o respeito, a leitura do livro aponta para um tipo de conhecimento que não deflui das Escrituras, abeberando-se em teorias importadas das ciências humanas e em pressupostos que não se coadunam com as premissas fundamentais da hermenêutica bíblica.
A presente constatação não significa, nem de longe, um desprezo ao conhecimento da teologia e de suas ciências auxiliares, pois a própria teologia sistemática somente se perfaz quando se utiliza de outros ramos do saber que não o puro manejo da hermenêutica - o que se observa nestas linhas é a necessidade de adotarmos pressupostos válidos à interpretação das Escrituras, porque é de pressupostos válidos que depende todo o edifício constituído por regras e métodos de exegese.
A obra caminha orientada por premissas criticistas, por meio da desconstrução de toda a teologia pentecostal anteriormente elaborada, a qual, segundo os autores, não é teologia pentecostal propriamente dita. Mas eis que Mesquiati e Kenner surgem com uma proposta que se pretende intelectualmente sofisticada, espiritualmente sensível e metodologicamente não racionalista, sendo, em sua concepção, uma abordagem apta a dialogar com a pós-modernidade, enquanto a teologia pentecostal por eles criticada seria modernista, racionalista, submissa aos métodos próprios do dogmatismo e do fundamentalismo.
Esta é apenas uma consideração sobre a Introdução do livro. Há muito ainda a ser questionado. Com o presente texto, esperamos ter despertado ou confirmado o interesse do prezado leitor quanto a um assunto de tamanha relevância, porque, apesar de o grande público pentecostal não ter conhecimento da existência de uma obra desse tipo, seminários de teologia pentecostal já estão sob a influência de professores que defendem pressupostos de interpretação que não guardam sintonia com o nosso credo.
Uma leitura devidamente informada conduz ao entendimento de que essa “nova hermenêutica pentecostal” não é exatamente pentecostal, tampouco hermenêutica. E, se analisarmos bem, veremos que também não é propriamente nova.
Referência da obra analisada:
OLIVEIRA, David Mesquiati; TERRA, Kenner R. C. Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexão e proposta para a construção de uma identidade teológica, Rio de Janeiro: CPAD, 2018, 224p.
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